Caros amigos, Marco e Thiago, parceiros de aventuras históricas.

Aos prezados parceiros da lavra de garimpar nossas raízes históricas. O mestre Euclides da Cunha nos impede de tentarmos forjar uma identidade paulista x mineira ou vice-versa, diferenciando-nos de costumes colonialistas antagônicos. Somos todos filhos das *Entradas e Bandeiras paulistas, cabos de uma mesma enxada. Teimosos e birrentos, turrões e amansadores de burros, somos paulistas, pois a significação histórica deste nome abrange os filhos de São Paulo, Rio de Janeiro, Minas e regiões do Sul, diz Euclides da Cunha. Se não, vejamos.





(...) Grande parte do século 17 é dominada pelas lendas sombrias dos caçadores de escravos, centralizados pela figura brutalmente heróica de Antônio Raposo Tavares.
Abriram se desde o alvorecer do século 17, nos sertões abusivamente sesmados, enormíssimos campos, compáscuos sem divisas, estendendo se pelas chapadas em fora (...)
Abria os, de idêntico modo, o fogo livremente aceso, sem aceiros, avassalando largos espaços, solto nas lufadas violentas do nordeste. Aliou-se-lhe ao mesmo tempo o sertanista ganancioso e bravo, em busca do silvícola e do ouro. Afogado nos recessos de uma flora estupenda que lhe escurentava as vistas e sombreava perigosamente as tocaias do tapuia e as tocas do canguçu temido, dilacerou-a golpeando-a de chamas, para desafogar os horizontes e destacar bem perceptíveis, tufando nos descampados limpos, as montanhas que o norteavam, balizando a marcha das bandeiras (...)
Segundo o que se colhe em preciosas páginas de Pedro Taques, foram numerosas as famílias de São Paulo que, em contínuas migrações, procuraram aqueles rincões longínquos, e acredita-se, aceitando o conceito de um historiógrafo perspicaz, que o "vale de S. Francisco, já aliás muito povoado de paulistas e de seus descendentes desde o século 18, tornou-se uma como colônia quase exclusiva deles". É natural por isto que Bartolomeu Bueno, ao descobrir Goiás, visse, surpreendido, sinais evidentes de predecessores, anônimos pioneiros que ali tinham chegado, certo, pelo levante, transmontando a serra de Paranã; e que ao se reabrir em 1697 o ciclo mais notável das pesquisas do ouro, nas agitadas e ruidosas vagas de imigrantes, que rolavam dos flancos orientais da serra do Espinhaço ao talvegue do rio das Velhas, passassem mais fortes talvez, talvez precedendo as demais no descobrimento das minas de Caeté, e sulcando-as de meio a meio, e avançando em direção contrária como um refluxo promanado do Norte, as turmas dos "baianos", termo que, como o de "paulista", se tornara genérico no abranger os povoadores setentrionais (...)




Veio depois o colonizador e copiou o mesmo proceder. Engravesceu o ainda com o adotar, exclusivo, no centro do país, fora da estreita faixa dos canaviais da costa, o regímen francamente pastoril (...)
Preso no litoral, entre o sertão inabordável e os mares, o velho agregado colonial tendia a chegar ao nosso tempo, imutável, sob o emperramento de uma centralização estúpida, realizando a anomalia de deslocar para uma terra nova o ambiente moral de uma sociedade velha (...)
Bateu-o, felizmente, a onda impetuosa do Sul. Aqui, a aclimação mais pronta, em meio menos adverso, emprestou, cedo, mais vigor aos forasteiros. Da absorção das primeiras tribos surgiram os cruzados das conquistas sertanejas, os mamalucos audazes. O "paulista" - e a significação histórica deste nome abrange os filhos do Rio de Janeiro, Minas, São Paulo e regiões do Sul - erigiu-se como um tipo autônomo, aventuroso, rebelde, libérrimo, com a feição perfeita de um dominador da terra, emancipando-se, insurreto, da tutela longínqua, e afastando-se do mar e dos galeões da metrópole, investindo com os sertões desconhecidos, delineando a epopéia inédita das "bandeiras" (...)
Daí o traçado eloqüentíssimo do Tietê, diretriz preponderante nesse domínio do solo. Enquanto no S. Francisco, no Paraíba, no Amazonas, e em todos os cursos d'água da borda oriental, o acesso para o interior seguia ao arrepio das correntes, ou embatia nas cachoeiras que tombam dos socalcos dos planaltos, ele levava os sertanistas, sem uma remada, para o rio Grande e daí ao Paraná e ao Paranaíba. Era a penetração em Minas, em Goiás, em Santa Catarina, no Rio Grande do Sul, no Mato Grosso, no Brasil inteiro. Segundo estas linhas de menor resistência, que definem os lineamentos mais claros da expansão colonial, não se opunham, como ao norte, renteando o passo às bandeiras, a esterilidade da terra, a barreira intangível dos descampados brutos (...)
Assim é fácil mostrar como esta distinção de ordem física esclarece as anomalias e contrastes entre os sucessos nos dois pontos do país, sobretudo no período agudo da crise colonial, no século 17 (...)





Os homens do Sul irradiam pelo país inteiro. Abordam as raias extremas do Equador. Até aos últimos quartéis do século 18, o povoamento segue as trilhas embaralhadas das bandeiras. Seguiam sucessivas, incansáveis, com a fatalidade de uma lei, porque traduziam, com efeito, uma queda de potenciais, as grandes caravanas guerreiras, vagas humanas desencadeadas em todos os quadrantes, invadindo a própria terra, batendo a em todos os pontos, descobrindo a depois do descobrimento, desvendando-lhe o seio rutilante das minas (...)
Constituiu-se, desta maneira favorecida, a extensa zona de criação de gado que já no alvorecer do século XVIII ia das raias setentrionais de Minas a Goiás, ao Piauí, aos extremos do Maranhão e Ceará pelo ocidente e norte e às serranias das lavras baianas, a leste. Povoara-se e crescera autônoma e forte, mas obscura, desadorada dos cronistas do tempo, de todo esquecida não já pela metrópole longínqua senão pelos próprios governadores e vice reis. Não produzia impostos ou rendas que interessassem o egoísmo da coroa. Refletia, entretanto, contraposta à turbulência do litoral e às aventuras das minas, "o quase único aspecto tranqüilo da nossa cultura". A parte os raros contingentes de povoadores pernambucanos e baianos, a maioria dos criadores opulentos, que ali se formaram, vinha do sul, constituída pela mesma gente entusiasta e enérgica das bandeiras (...)



Concluo que se abrirmos ao acaso a panela da casa de um caboclo qualquer das zonas do noroeste paulista ou sul de Minas, por exemplo, haveremos de encontrar as mesmas misturas e condimentos, o mesmo sotaque e os traquejos de perícia e desconfiança bem aparentados, além da preguiça intelectual e a idêntica lerdeza conformista dos tementes a Deus.
Os mesmos valores morais e espirituais nos regem, invisíveis, fazendo-nos seres hipoteticamente diferenciados apenas pela simpatia de um clube ou na tênue condição se servo ou senhor.
Os eufemismos são compreensíveis. Mas os que se julgam superiores pela simples divisa imaginária delimitadora de um estado ou território, todos nascidos recentemente e colonizados pelos mesmos portugueses, carecem de humildade e leitura, deveres nem sempre cumpridos pelos nossos educadores.

José Márcio Castro Alves

*Entradas eram expedições financiadas pela coroa portuguesa e Bandeiras eram expedições financiadas por particulares.

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